O comportamento antirracista

Dalmo Oliveira*



A expressão do racismo é, na verdade, a manifestação do ódio. Desconstruir o racismo cotidiano deve ser, pois, o exercício permanente de construção de linguagem antirracista. O racismo não nos feriria, se não fossemos, como diz Judith Butler (1997) “seres linguísticos”. O ataque racista se torna, portanto, uma tentativa violenta de “cancelamento” do outro.


Agora no Brasil (e em boa parte do mundo) a discursividade antirracista ganha força, depois dos inúmeros casos de violência extrema contra a população negra. Desde o caso George Floyd, em Minneapolis, ao assassinato brutal do imigrante congolês Moïse Kabagambe na orla de Copacabana. 


Em várias partes do planeta, estátuas de mercadores escravistas foram abaixo. É como se estivéssemos despertando de um longo pesadelo tenebroso em que figuras perversas e desumanas dominavam o cenário e ainda eram glorificados por seus feitos dantescos. 


A palavra-de-ordem “Vidas negras importam!” ecoou durante alguns meses, especialmente nas avenidas estadunidenses. Aqui no Brasil viralizou, principalmente no seio da juventude negra, a autoafirmação de que sou preto, pobre e da periferia (ppp). A discursividade da “pretitude” foi substituída no vocabulário dos ativistas do Movimento Negro pelo conceito de negritude.


Tentou-se até alertar que população negra, segundo a convenção do IBGE, é a soma das populações preta e parda e que os “pretos” são a minoria na conformação racial no Brasil, mas não adiantou. A nova juventude militante, notadamente, as mulheres negras ligadas aos movimentos feministas e LGBTQI+, acha mais chique se dizer “preta”.


De certo modo, essa preferência discursiva acaba favorecendo uma certa indizibilidade da população parda, negando a ela o pertencimento negro. Isso pode ter uma consequência imediata: a adesão identitária dos pardos ao campo não-negro de autoimagem. É preciso lembrar ainda que a definição etnorracial de “pardos” e “pretos” para uma definição de “população negra” é fruto de décadas de debates e discussões do Movimento Negro com representantes do Estado Brasileiro para a medição censitária.


África em mim


O discurso antirracista, assim, me parece carregar em si uma narrativa exógena à condição do negro. O antirracismo se configura como um posicionamento social proativo contra o racismo. É uma atitude que se propõe a evitar a violência racial. Ser antirracista, então, seria, sabendo do racismo, tendo consciência dele e dos males que causa, abortá-lo antes que se manifeste efetivamente. 


Então, para entendermos o antirracismo precisamos compreender que esse deve ser um ativismo da população não-negra, muito mais que dos negros propriamente ditos. É como se você cobrasse dos judeus que não sejam antissemitas, entende? Simplesmente desnecessário e óbvio.


Há tempos procura-se definir o que seja se sentir negro no Brasil. É algo para além da tez da pele, das características capilares, do formato do nariz. Você pode nascer com todos esses atributos e mesmo assim não se sentir negro, culturalmente falando. Muitos negam e preferem o conforto de um “armário” pintado de branco por dentro. 


O filme “Passing” (2021), que aqui recebeu o título “Identidade” retrata uma situação assim. Uma mulher negra, casada com branco, que não consegue perceber sua própria dificuldade de consciência. Extraída do convívio da família originária ela vive numa “bolha não-negra” até reencontrar uma amiga de infância.


O antirracismo é uma tomada de decisão da população não-negra. É uma vigília e autovigília permanente, principalmente num país miscigenado como o Brasil. Para os negros, combater o racismo é cultivar o orgulho da origem africana. E lutar, permanentemente, por igualdade. Apenas isso!


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*DALMO OLIVEIRA é jornalista, ex-presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial da Paraíba.